Como se dá nossa relação com as imagens? Como se dá nossa relação com o mundo mediada pelas imagens? Como se dá nossa relação com a imagem mediada pelas tecnologias (como o vídeo), pelas mídias (como a televisão) e demais dispositivos de exibição (como o sistema de arte)? E as imagens da arte? Como pensar as condições exteriores que determinam a concepção da obra, seus modos de exposição, sua recepção? Interrogações seminais que atravessam a produção artística de Sonia Andrade que, desde seus primeiros vídeos, vai refletir as imbricadas relações entre os modos de produção, circulação, mediação e recepção das visibilidades.

Sonia Andrade é uma das pioneiras da videoarte no país, ao lado de artistas como Letícia Parente, Anna Bella Geiger, Ivens Machado e Fernando Cocchiarale, Paulo Herkenhoff, Ana Vitória Mussi e Miriam Danowski. Esse grupo, com apenas uma câmera emprestada de Jom Tob Azulay, experimentou o vídeo como arte a partir de 1974, em meio aos questionamentos das concepções formalistas da arte, ao endurecimento da ditadura militar e à forte resistência, especialmente da crítica carioca, à sua aceitação como arte1.

Entretanto, sua produção não se resume à videoarte e às videoinstalações, mas inclui uma diversidade de suportes: do desenho-escrita à apropriação de objetos e fotografias, de cartões-postais à arte correio. Poderíamos demarcar algumas especificidades de sua poética que permeiam toda sua obra, mesmo quando o meio não é o vídeo: seu caráter episódico, incompleto e relacional (que se refere à sua opção em conceber cada trabalho como parte de um conjunto); as interseções e os confrontos entre imagens, objetos e palavra (escrita) que geram inflexões em seus encontros e acontecimentos; o enigma do tempo, da presença e da memória (o paradoxo dos dêiticos); o intervalo e o trânsito entre fluidez e permanência, opacidade e transparência, aparição e desaparição.

Primeiros vídeos: o corpo e a televisão

Sem paradigmas que conduzissem a experimentação em vídeo, este se construiria em estreita relação com a história das imagens – da pintura, da escultura, do cinema e da fotografia – como também confrontada à invasão e difusão massiva das imagens exercida, sobretudo, pela televisão. Esse dispositivo de mediação e legitimação que tanto transtornaria as referências de tempo, espaço, escala e distância, quanto transformaria visões e perpetuaria preconcepções de mundo. A tela da tevê passou a ser, desde sua invenção, lugar de irrupção de ficções na letargia do cotidiano e de abertura ao fluxo crescente de imagens e informações. Como sua recepção, geralmente, se dá nos ambientes domésticos, em meio às relações estreitas e privadas, ela opera simulando situações de reconhecimento e proximidade, familiarizando os acontecimentos, dissolvendo fronteiras entre fato e ficção. Concorrendo com o ambiente à volta, a demanda de atenção de sua audiência costuma ser dispersiva: seu artifício é ocultar-se, fazer-se transparente, para que o espectador acredite relacionar-se diretamente com o mundo. Durante a ditadura militar no Brasil (1964–1985)2, a televisão possuiu um papel fundamental na construção de identidades nacionais, de uma “imagem” de Brasil. Mais do que isso, em um país culturalmente complexo, atravessado por concepções diferenciadas e, por vezes, antagônicas de mundo, a tevê foi a grande máquina integradora, sufocando dissensos e ocultando conflitos. Nas casas brasileiras, a tevê cumpriu uma função aglutinadora: a seu redor, todas as noites, as novelas tanto reproduziam o tempo fragmentado e seriado da modernidade como cicatrizavam seus lapsos na temporalidade contínua da narrativa estendida. Combinação insólita entre a oralidade, o relato épico ao pé do fogo com seu tempo orgânico e artesanal, e as imagens fragmentadas da indústria audiovisual e publicitária.
Dentre os artistas do grupo do Rio de Janeiro, foi Sonia Andrade quem manteve o vídeo e as imagens técnicas como o principal disparador de suas obras e, sobretudo, quem confrontaria de modo mais ostensivo essa potência midiática, a tevê, que invadia e moldava o olhar, o cotidiano e o comportamento das pessoas, para perscrutar seus modelos e estratégias de sedução narcotizante e de violência velada. As tiranias – políticas, econômicas, religiosas, culturais, quais fossem – que promovem estratégias de cegueira e emudecimento: manipulam o desejo, violentam nossa capacidade de julgar, subtraem-nos a palavra.

Seus dois primeiros conjuntos de vídeos – a série de oito vídeos (Sem título, 1974-77) e a de sete vídeos-episódios (A morte do horror, 1980) – têm como audiência o olho da câmera e dois protagonistas principais: seu corpo e a televisão.

É desse modo que assistimos à pele deformada por um fio de náilon que, passando entre os orifícios das orelhas, provoca sulcos no rosto como cicatrizes sem corte; a mão direita amarrada sob fios entrelaçados em pregos entre os dedos por uma inábil mão esquerda; os fios e pelos que cobrem a superfície do corpo aparados por uma pequena tesoura. Nesses três vídeos (S/T, 1977), a violência é tateada, não é a agressão explicitada ao limite intolerável da dor e da provocação como na ritualidade da body art ou de algumas performances que lhes são contemporâneas: Sonia Andrade nem a torna visível, nem a esconde: superfície sobre superfície, imagem sobre imagem, pele-tela-mundo em espelhamento.

O corpo é, nesses vídeos, questionado em sua arqueologia complexa. Mas é o corpo também como imagem, moldado e controlado por crenças e saberes, violentado por forças diversas, submetido à espetacularização e à comercialização. Por isso constituem-se na tensão entre o corpo filmado e sua circulação como espetáculo; entre o corpo feminino conformado por rituais cotidianos e códigos sociais (sobretudo em uma sociedade patriarcal como a brasileira), por discursos e suas insurreições silenciosas; entre o corpo torturado e silenciado (eram tempos de mutilações e assassinatos velados nos porões da ditadura) e as catarses midiáticas; entre o comportamento em sua docilidade servil e suas instrumentalizações políticas e mercadológicas; entre a pulsão de ver e a saturação do olhar no consumo publicitário; entre a exibição narcísica e a vigilância das câmeras; entre o enquadramento da percepção – sua submissão ao espelhamento exemplar – e as rebeliões do desejo.

Um de seus vídeos (S/T, 1975) é antológico: a artista, sentada à mesa, almoça feijão e bebe guaraná; ao fundo, a janela, essa abertura que exibe a perspectiva do mundo exterior, comum na tradição pictórica. Sobre a paisagem, contudo, na altura da fuga que atrairia e dispersaria o horizonte, um aparelho de televisão transmite um seriado americano, Tarzan, e seus intervalos comerciais. Uma janela sobre outra janela. Tarzan era um seriado que ficticiamente se passa na África, mas é filmado no México e exibido no Brasil. Uma superposição de lugares e culturas: afinal, o infinito das distâncias geográficas é substituído pelo infinito das imagens que nos chegam pela tela. Seu diálogo com a história da arte é manifesto: ali estão O ateliê de Vermeer (1665-1666) e As meninas de Velásquez (1656), duas pinturas que nos perturbam a certeza de que vemos ou se somos vistos. Ao fim do vídeo, o feijão é lançado contra a câmera, sobre a película em vidro que separaria o exterior e o interior, o real e a ficção, quem vê e quem é visto. O véu de feijão oculta a cena, a tela torna-se baça, deflagra a televisão como dispositivo de mediação, denuncia-a como ilusória sua pretensa transparência que confunde quem está dentro ou fora do aparelho, as construções do real e a ilusão de seus modelos, a percepção de um fenômeno e sua representação, o eu e o outro que me vê, o que é reflexo e o que é original. Pois a tela não é apenas a janela por onde o mundo chega, mas também a superfície do espelho que nos oferece o reflexo. Entre a solidão da visão e a sociedade do espetáculo, o próprio homem torna-se imagem e semelhança do que é veiculado na mídia, a origem e o reflexo de seus deuses maquiados: as celebridades de novelas, os personagens de um reality show ou de um crime passional. A tevê torna-se um dispositivo de autorização dos comportamentos que espelha.

As complexas relações com as imagens midiáticas seriam também abordadas, de modo estrutural e metalinguístico, em outros trabalhos em que a artista interfere na relação dispersiva e passiva do espectador, no controle do tempo exercido pela tevê, na repetição de um protótipo programático, ou nos clichês e na sintaxe audiovisual. Como no vídeo S/T (1977) em que a artista, postada em frente a televisores sintonizados nos quatro canais de tevês abertas, repete com insistência a frase: “desligue a televisão!”. Ninguém ousou então desligar a televisão.
Imagem inserida em outra imagem que se repete no conjunto A morte do horror (1981). Nessa série, cada vídeo-episódio é esvaziado – tanto material quanto metaforicamente – de seu conteúdo narrativo, como uma novela ao revés. Um conteúdo cuja ferocidade é latente: em um dos vídeos, vemos uma tevê veiculando a imagem de peixes de aquário, até que alguém, ao desligar o aparelho, provoca uma fissura por onde a água escoa devagar e, supostamente, a vida. O último episódio da série nos mostra uma infinidade de aparelhos de tevê, um inserido em outro, que a artista enlaça, em um jogo de capturas e fugas, uma mise en abyme.

Videoinstalações: o paradoxo dos dêiticos

Em seu primeiro vídeo, realizado em 1974, a imagem de um muro na rua Jardim Botânico é tomada em plano contínuo. Sobre ele, vemos as assinaturas ou garatujas de anônimos, as reivindicações ou denúncias de uma época brutalmente silenciada, e a assinatura da artista. Curiosa encruzilhada entre a palavra e a imagem que se reverberará, de modos diferentes, em muitas de suas obras. Décadas mais tarde, em 2010, Sonia Andrade filmará o mesmo muro, sob o mesmo ângulo, buscando reproduzir seus passos e a cadência das imagens. Entre os dois vídeos, o escoar do tempo, a escrita de uma cidade. Mas a escrita (devemos entender) é antes o balbucio das frases, a incompletude dos relatos, o testemunho de marcas e restos que podem permanecer ignorados. A artista é uma coletora desses rastros e vestígios, desses signos estilhaçados que a história oficial condena ao esquecimento.

Em muitas de suas videoinstalações e vídeo-objetos, a palavra escrita é posta em proximidade com objetos e imagens. É assim que versos enigmáticos do poema Song, do inglês do século 16, John Donne (1572-1631), são o disparo e a flecha de algumas exposições: “Goe, and catche a falling starre”, no MAM-Rio, em 1999; “Tell me, where all past yeares are”, no Parque Lage, em 2004; “Get with child a mandrake roote”, no Oi Futuro do Flamengo, Rio de Janeiro, em 2010. Cada uma das mostras tem a propriedade de ser, a um só tempo, independente e relacionada, porque formam aquilo que Sonia Andrade convencionou chamar de “conjuntos”. Uma opção antiga da artista: conceber seus trabalhos não como unidades fechadas, mas como partes, a conectar situações abertas, incompletas e episódicas.

A esse conjunto específico que se desenvolve com base nos versos de Song chamaremos “poema”.3 Um poema em que os versos – os vídeos, as videoinstalações, os objetos, a palavra – são depositados no mundo ao longo dos anos, em um tempo estendido e vagaroso que nos solicita um lento esperar, que nos seduz e aflige com a promessa de um porvir incerto, de uma reunião das estrofes a chegar sem data prevista.

Imperativos, os versos de John Donne — sempre escritos em uma das paredes dos espaços expositivos — dão voz de comando para ações inalcançáveis, quiçá impossíveis. É da palavra, de sua densidade, que vem o obscuro comando, que vem a secreta exigência. Exigência do quê? De fazer-se imagem? De fazer-se obra? De fazer-se arte? De capturar a estrela cadente? De redesenhar o tempo e desvelar seu enigma? De ser magicamente fecundada pela raiz da mandrágora?

Na videoinstalação Périplo (MAM-Rio, 1999), o caráter épico da aventura do argonauta é dado justamente pela escala diminuta de um barco solitário, soçobrado entre as pedras, em contraste com a sala expositiva de proporções generosas. Ao fundo, um pequeno monitor mostra a imagem de uma onda congelada como força em potência de desastre ou redenção. Pois não sabemos se tal onda, em suspensão, é a causa do naufrágio ou a promessa do desencalhe. Se é um não mais ou ainda não, um neste aqui ou nesse lá. A suspensão de sua fluidez no congelamento é passageira, sua paralisia transitória. Uma mobilidade que a imagem do vídeo, sua virtualidade projetada e confrontada com a materialidade dos objetos e do espaço, só faz ecoar.

Do mesmo modo, na exposição no Parque Lage, objetos da infância da artista — como a boneca, os patins, as bolas de gude, a bicicleta — são colocados ao lado de sua imagem em ação no vídeo. Ou a imagem ultrassonográfica de um feto é projetada sobre pó de mármore, pedra por excelência da escultura clássica e seu desejo de perenidade, confrontando a história ancestral da imagem artística e as novas tecnologias (confronto evidente também nas videoinstalações Vênus, Olimpo, Apolo, (MAM-Rio, 1999).

Ora, tornando visível a passagem da presença à ausência, a imagem em vídeo surge como traço de um objeto ausente, enquanto este retorna ao aqui e ao agora, passagem indecisa entre aparição e desaparição. Uma trama de tempos que se entrecruzam e que explicitam o enigma da presença e o paradoxo dos dêiticos. Pronomes e figuras de linguagem, os dêiticos apresentam algo, alguém, alguma coisa, ao mesmo tempo que fazem referência ao contexto situacional e ao próprio discurso. Nesses trabalhos de Sonia Andrade, os dêiticos que indexam o tempo (agora, antes), o espaço (aqui, lá), o endereçamento a alguém (eu, você, ele, nós) ou algo (isto, isso, aquilo), não se estabelecem sem paradoxos, sem superposições e cruzamentos indecisos. O que a arte faz é multiplicar e embaralhar situações e enunciados, tempos e espaços. Nada pode ser nomeado sem imprecisões: o aqui não se distingue do lá; o “não-mais” coteja o “ainda-não”; o isto se confunde com o aquilo; e eu com você. A artista evoca o não apresentável do tempo, não como uma nostalgia da eternidade ou do absoluto perdidos, mas como uma excentricidade da consciência, como memória que sobrevive em transmutações, perdas, reescritas e esquecimentos. As memórias pessoais, as memórias da arte e de suas histórias, as memórias do próprio tempo se entrecruzam. Há imagem do tempo?

O que está em questão é o próprio estatuto da imagem que se ergue e se desdobra para além do visível, que deflagra uma invisibilidade na intimidade do visível, como algo estrangeiro que, a um só tempo, exalta e assombra, mas a partir do qual a imagem se constitui e faz um universo descerrar-se por ela, nas mútuas aparições e desaparições entre homem e mundo.

– Marisa Flórido César


1 Os primeiros vídeos foram feitos em 1974, por Sonia Andrade, Anna Bella Geiger, Ivens Machado e Fernando Cocchiarale e, alguns meses mais tarde, já em 1975, também por Letícia Parente, Paulo Herkenhoff e Miriam Danowski. O grupo realizou cerca de 40 vídeos, alguns filmados pelo próprio Jom Tob Azulay. O que provocou o interesse desse grupo pela videoarte foi o convite de Walter Zanini a alguns artistas de São Paulo e a Anna Bella Geiger (para que ela chamasse alguns artistas do Rio) para participarem da exposição “Video-art” que ocorreria em 1975 nos Estados Unidos. Os artistas de São Paulo não conseguiram o equipamento, mas os do Rio emprestaram de Jom Tob Azulay, que obtivera um equipamento Sony Portapak. A exposição “Video-art” foi apresentada em quatro instituições norte-americanas: Institute of Contemporary Art/University of Pennsylvania, Filadélfia; The Contemporary Arts Center/Cincinnati, Ohio; Museum of Contemporary Art/Chicago, Illinois; Wadsworth Atheneum/Hartford, Connecticut. Cinco brasileiros participaram dessa exposição: quatro do núcleo pioneiro carioca (Anna Bella Geiger, Ivens Machado, Sonia Andrade, Fernando Cocchiarale) e Antônio Dias, com um vídeo realizado em Milão, onde residia.

2 Regime autoritário e nacionalista, instaurado por golpe militar, que derrubou o governo do presidente eleito João Goulart, em 1º de abril de 1964 e que durou até 15 de março de 1985, sob o comando de sucessivos governos militares.

3 Um verso de outro poema de John Donne “It were but madness now t’impart/ The skill of specular stone”, do poema The Undertaking, foi também o gerador da série de videoinstalações com cristais, em torno do verso, exibidas em 2005, no CCBB-RJ e na Galeria Tempo, em 2008.